Espelho da alma
desfeita em estilhaços por plumas brancas maculadas pela seiva de homem pecador.
Fragmentado sob Vénus e sobre a ardósia fleumática do jardim de inverno,
decorado pela vegetação seca e urnas partidas, d’onde escorrem as cinzas que
bailam ao sopro de Éolo e pairam no vazio formando nuvens de pó que instigam os
olhos obcecados, que rompem com bravura os sete véus do espírito.
Lá fora, as venezianas
das janelas embatem contra as paredes por caiar e os galhos secos da cerejeira
gemem enquanto escalavram os vitrais coloridos das janelas do segundo andar. Os
baloiços proferem um brado estridente enquanto se entrelaçam e se enamoram. Os portões
adornados pelas correntes pesadas se debatem freneticamente contra a sebe que circunda
toda a área pertencente ao palacete.
E cá dentro estou eu, com a lareira e as velas
acesas, com Saramago nas mãos e debaixo dos olhos, mantenho-me na cadeira de
baloiço que me baloiça e faz ranger o soalho empoeirado, com as pernas cobertas
pela manta de retalhos. E distraio-me a fitar pela janela a chuva a cair, à
espera de ouvir o chiar das tuas botas enquanto sobes o varandim e giras a
maçaneta, escancarando a porta, de chapéu e sobretudo ensopados e esboças o
mais belo sorriso de todos, que ilumina a sala, os quartos e o saguão. Encandeando
o meu ser, desencantando quaisquer maldições e ressuscitando o espelho da alma
desfeita em estilhaços por plumas brancas maculadas pela seiva de homem
pecador.
Por agora, quimeras.
Nada passa de sonho, fruto da imaginação. Será que um dia voltas? Ou,
porventura, irei eu? Para já espero. É somente, por agora, o que posso fazer.