terça-feira, 25 de junho de 2013

Litteris Sanctis Lutum


Do alto fito-os lá em baixo. Não que eu seja melhor do que eles, mas agora vejo tudo de um degrau distinto do que outrora via, onde a lua cheia e descoberta embate sobre a ardósia oleada e faz ricochete, fazendo cintilar as veredas, trazendo a ventura, a fé e tempos de bonança. Olho para as minhas botas que antes foram novas e vejo quão gastas elas estão, e lamacentas. Mas os meus pés estão intactos, Ave!
 E do alto fito-os lá em baixo, no pântano lodacento, em devassidões efémeras com as ninfas de gelo que o aquecimento prazeroso do desejo lascivo derreterá, indubitavelmente. Ou o sol que nascerá ao amanhecer, e que encandeará os olhos dos sonhadores sem rumo. Mais cedo ou mais tarde será assim e eles nem sequer fazem ideia, pobres, frágeis e inócuos santos de barro, sem vida, sem sonhos, sem rumo.
Não é dor, nem pesar… É como se sentisse o quanto é descartável. É como se soubesse que não passam de areias esgotadas por uma ampulheta que, num piscar de olhos, enredam a essência e não deixam evocar na memória que não há estipêndio de valor real para quem vive a estroinice por preferência. Deixam a razão de parte e evocam prazeres dionisíacos. Estão abandonados, deixados como folhas de outono à sorte e vivem, sem rumo nem direção, à espera de uma rajada de vento que os transporte, mesmo sem bússola, nem astrolábio que norteiem um caminho… “que seja onde o vento levar”, é o lema deles. Eu sei, eu já fui assim.
E não pretendo descer, nem vou cair novamente. Estou bem firme aqui, com alvo traçado e pretensões, de tornar reais os meus sonhos. O nevoeiro começa a inabilitar a minha visão e eu já não os fito lá em baixo, infelizmente. O meu coração aperta, mas sei que tenho um caminho a seguir, e sei que só o farei sozinho. Não estou apto a ajudar ninguém, nem forças para mim mesmo tinha outrora… Ora, não se trata de egoísmo. Basta a cada um os seus próprios males, essa que é essa! Até porque cada qual tem de querer sair do pântano e prosseguir os seus verdadeiros sonhos…

E com um suspiro decido continuar o meu caminho, rumo ao castelo dos sonhos. Pois eu sonho alto, e afirmo: eu sei que eu serei imortal, nem que seja para aqueles que me são mais próximos, vou fazer a diferença, pois eu sei o quanto especial eu sou. 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Magnum Somnianti Puer



Promessas francas sobre um palácio em construção são certezas ditas na mais pura das emoções. Elas cobrem a alma com a brisa primaveril e espelham-na, num sorriso cintilante. É como se brotasse em mim, como uma flor, a afeição, como se almejasse fundir dois em um, para sempre. Sim, para sempre, sem volta, eternamente, enquanto durar. São sentimentalidades que me conturbam nesta fascinação desmedida provocada pela carência.
Na verdade, o meu escudo deveria ser impenetrável. De muito pesar já padeci por me entregar assim, por inteiro. Por vezes, sem solução, a não ser a morte, o termo sem volta. Mas não é assim o meu escudo (se é que eu o tenho). Eu entrego-me, mesmo assim. E vivo cada momento. Sou muito feliz, porque tudo o que vivo é intenso, porque voo alto. Contudo, sei que sofrerei muito mais, se porventura me faltarem as asas, ao saltar do mais alto cume. Mas eu entrego-me. É como sou. Já sofri muito com isso, por me entregar, por confiar em alguém, acredita. Mas, sei que sou mais feliz também, porque vivo assim, intensamente. Isso não cinge os meus sonhos, as minhas quimeras, do “era uma vez”, findado no “viveram felizes para sempre”. Sei que o palácio em construção um dia estará pronto, com torres inabaláveis, abóbodas cravadas com pedras preciosas, e de cúpulas bordadas com os mais belos vitrais alguma vez imaginados.
Mesmo que um dia o D. Casmurro apareça com o escudo mais forte do mundo, perdido no labirinto, dentro de si, eu farei tudo o que puder para o conquistar, se um ponto luminoso vir sobre o seu ombro esquerdo. Pois nada me assusta, nem o mais complexo labirinto. A beleza dos labirintos é saber que, apesar de todas as peripécias e dificuldades, existe neles um caminho certo. E sabe bem batalhar para o encontrar. O galardão no fim é superior, quando desbravando florestas densas, revestidos com a armadura de pureza e simplicidade nas espadas de madeira, encontramos a recompensa. E quiçá, no fim, vivemos felizes para sempre, eternamente. Mesmo que o próprio eterno tenha um fim, «que seja eterno enquanto dure».

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Quaero Enim Satisfactio

Caminhava, galopante e o crepúsculo serôdio caiava o céu de breu enquanto entardecia o dia. Caíam flocos de neve que cabriolavam ao ritmo do vento de oriente e de alvo tingiam os pinheiros eternos e, no solo, as quatro pegadas dele se estampavam, deixando-o vulnerável a predadores de presas frágeis. Ansiava saciar a própria sede, serenamente, no leito de água tépida da qual o frio não se tinha ainda apoderado.
A música do bosque atordoava os seus sentidos e vestia-o de medo. Enquanto satisfazia a sua sede, mirando o seu reflexo no espelho de água, secretamente, aflorava em si uma paz amedrontada pela incerteza desmedida de olhos ávidos dos predadores que, por ali, decerto, estavam prontos para cravar os caninos afiados no seu corpo indefeso, cujas veias pulsantes bombeavam o sangue que mancharia pecaminosamente o manto alvo de neve em tons de escarlate.
No fundo, era premonição genuína o que lhe cingia os pensamentos ao temor: um uivar, não muito remoto, fez calar a percussão dos galhos secos e dos cristais de geada que com o vento soavam. Pasmado ficou, tentando compreender de onde provinha o som estridente que perfurava o tímpano. Temia que o seu fim chegasse e estava certo, no fundo.
Do meio da névoa, de caminhar robusto e imponente e olhar flamejante, surge o predador, que, num outro uivo, qual grito de ataque, cheio de velocidade rasga o vento numa passada com alvo traçado – Ele. A passada feroz do predador, que quebrava os galhos secos semeados à sorte no chão, despertou-o da hipnose que o tinha cristalizado como o gelo ali, despoletando uma corrida desenfreada rumo ao incerto, na tentativa de escapar ao termo a que fora destinado.
E corriam, como se no fim o eterno os esperasse, na esperança de honra, vitória. A neve, a cada pegada deles, erguia-se em pranto aos firmamentos, rogando pelo melhor para ambos, somente. Muito correram, até que ele viu que não valia mais a pena, pois nem tudo vale, e rendeu-se por completo. Desistiu de correr, abrandou e entregou-se. Quiçá esperava por um ato de misericórdia, compaixão. Só que nada... Deveras é o ciclo e nada há a fazer.
O predador cravou-lhe os caninos no colo e, como espinhos de rosa em mão de donzela, perfurou-lhe a carne, profundamente. Sentia o ofegar do predador no seu regaço. E de rúbeo o chão branco de neve e o lago espelhado se pintaram. Ele, enquanto isso, pensava na primavera a florescer, que nunca mais veria, e no canto dos pássaros, que nunca mais ouviria, e as lágrimas vertiam dos seus olhos. Serenamente, os sentidos cessavam, de dor não padecia e de paz a sua áurea cintilava, pois nobre foi o seu desfecho. Afinal de contas, é esse o ciclo. Todos procuram a própria satisfação. E ele, nobre e delicada presa, correu o risco por satisfação e se findou para satisfazer o pobre e imponente predador. No fundo, é esse o ciclo.