quinta-feira, 19 de junho de 2014

Primogenitura



Era o fim do inverno no outro lado do atlântico, na cidade circundada pelo arco de água doce com setecentos e cinquenta palmos de largura. Eis que exatamente aos quarenta e oito minutos após o nascer sol, no décimo primeiro dia do terceiro mês do calendário gregoriano, nove anos antes do segundo milénio, é-lhe concedido o dom supremo, através do sopro do Criador: a vida.
Contaminado pela impureza pecaminosa do seu admirável novo mundo, Ele, ser frágil e imaculado, como que num presságio sobre as atrocidades e selvajarias a enfrentar de agora em diante, comprime a face e liberta um clamor esgoelado e pesaroso. Os seus progenitores regozijavam com júbilo a sua chegada. Ele era o primogénito, o primeiro pomo resultante daquele amor, e o percursor da linhagem, quem carregaria posteriormente o brasão da estirpe. Uma fusão milagrosa da seiva humana de cor escarlate entre dois seres.

No princípio, coberto de seda e de grinalda, e decorado com junquilhos amarelos em volta da cabeça, aquando dos seus primeiros passos, na primeira vez que os seus pés tocaram o chão de porcelana quente da hora sexta, Ícaro e Penélope já eram na essência de Ele, e viviam em paz no seu interior. Os lustres de cristais iluminavam os seus passos pelo desfiladeiro e nos córregos, com a água pelos joelhos, o povo, incluindo os seus pais, faziam vénias em sua honra, cortejando-o de acordo com a sua passagem. Quando chegou ao fundo do desfiladeiro, deparou-se com a cascata d’água glacial, que refletia o seu semblante. Foi a primeira vez que Ele mirou a sua imagem e tal como Narciso amaldiçoou a si próprio, despetalando em sete mil a flor da sua alma.

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