Era o fim do inverno
no outro lado do atlântico, na cidade circundada pelo arco de água doce com
setecentos e cinquenta palmos de largura. Eis que exatamente aos quarenta e
oito minutos após o nascer sol, no décimo primeiro dia do terceiro mês do
calendário gregoriano, nove anos antes do segundo milénio, é-lhe concedido o
dom supremo, através do sopro do Criador: a vida.
Contaminado pela
impureza pecaminosa do seu admirável novo mundo, Ele, ser frágil e imaculado,
como que num presságio sobre as atrocidades e selvajarias a enfrentar de agora
em diante, comprime a face e liberta um clamor esgoelado e pesaroso. Os seus
progenitores regozijavam com júbilo a sua chegada. Ele era o primogénito, o
primeiro pomo resultante daquele amor, e o percursor da linhagem, quem
carregaria posteriormente o brasão da estirpe. Uma fusão milagrosa da seiva
humana de cor escarlate entre dois seres.
No princípio, coberto
de seda e de grinalda, e decorado com junquilhos amarelos em volta da cabeça,
aquando dos seus primeiros passos, na primeira vez que os seus pés tocaram o
chão de porcelana quente da hora sexta, Ícaro e Penélope já eram na essência de
Ele, e viviam em paz no seu interior. Os lustres de cristais iluminavam os seus
passos pelo desfiladeiro e nos córregos, com a água pelos joelhos, o povo,
incluindo os seus pais, faziam vénias em sua honra, cortejando-o de acordo com
a sua passagem. Quando chegou ao fundo do desfiladeiro, deparou-se com a
cascata d’água glacial, que refletia o seu semblante. Foi a primeira vez que
Ele mirou a sua imagem e tal como Narciso amaldiçoou a si próprio, despetalando
em sete mil a flor da sua alma.
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