
Para o caso de
sobrepujarmos a trincheira vertiginosa, a caverna abismática na qual estamos,
quero que tu saibas que eu não enlaço esta discórdia… E mais, já dizia o
ancião: “quando um não quer, dois não brigam”. Eu não quero, não vou e não
estou a brigar. Se um dia isso tudo passar, como a noite amanhece e nasce um
novo dia e como as estações mudam e as nuvens condensam, aspergindo a terra
fértil e desabrochando tudo em flor, eu estarei à espera que todo esse rancor,
essa dor e essa tristeza passem. Eu estarei a espera da rosa sem espinhos no
cano da arma com que me apontas. Esperarei também que embainhes novamente a tua
espada, com a qual me feres, repleta de palavras torpes, cessando por fim esta contenda
inútil que travas sozinho. Eu tenho todo o tempo do mundo. Quando tudo isso
começou, eu só demandava em busca do além do arco-íris, daquilo que ambos almejávamos,
a felicidade. Distinto do que dizes, há três certezas nesta vida, e não só uma.
A primeira, é a que nascemos um dia, um momento de regozijo. A segunda, é a que
um dia também vamos morrer, seja tarde ou cedo. E a terceira, é a que passamos
por esta vida, toda ela, em busca da felicidade. E era só isso o que eu fazia:
buscava (e buscarei até ao fim) a felicidade. Desde o início, quando as nossas
teias se entrelaçaram e fizeram de nós felizes, até ao dia em que tudo se
findou e puseste o dedo inconformado e rancoroso no gatilho. Quer tenha sido
efémera esta felicidade, fomos felizes, é facto. E, eternamente, eu guardarei
cá dentro todas essas memórias, podes levar contigo isso como verdade. Tudo se
findou para que fossemos mais felizes. Pois é a felicidade o objetivo, sempre.
É egoísmo meu dizer que o fiz só por ti, para que fosses feliz. Eu fiz por mim
também, tens toda a razão de me acusar. Cotudo, sabe que tudo o que eu fiz, foi feito por amor. Isso jamais podes sequer duvidar ou negar! Por amor-próprio
e por amar-te também. Eu abri a gaiola para que possas novamente voar, livremente, pois agora eu entendo que uma ave selvagem nunca poderá ser domesticada, é indomável
e nasceu para ser livre, no meio da floresta, para voar sem rumo, nem
compromissos. Contudo não te deixes capturar, conselho de quem te ama. É impossível ter as duas coisas: ou és selvagem e sem dono, ou és domado e tens uma gaiola, que te restringe a fazer coisas. Não queiras, nem penses que será possível ter tudo ao mesmo tempo. É puro egoísmo e falta de respeito por quem se entrega para ti pensar que podes ter as duas coisas. E quanto a mim... Bem, quanto a mim, agora não
viverei mais na minha ilusão, no meu castelo de areia, o qual eu próprio
construí, de que eu posso mudar a natureza das coisas: uma águia jamais será
uma galinha. É assim a natureza e eu tenho que me conformar. Eu não sou um deus com domínios sobrenaturais. E eu vou recomeçar, desiludir-me e procurar novamente a felicidade. Entende que eu simplesmente tentei ser um titereiro de uma marioneta com vida e
vontades próprias, indomável. Só que eu nem sequer sei manejar uma marioneta e ainda por cima, a marioneta que escolhi tinha vontade própria! Embaracei e embaracei-me nos fios, desculpa se te fiz sofrer. Todavia, antes que
seja tarde e que nada resolva o emaranhado que estou a fazer, o melhor é parar, para que eu não torne inútil e inutilizável a marioneta. Sempre aprendi que quando não sabemos utilizar uma coisa, devemos deixar para os peritos fazerem. Foi o mais sensato parar para eu não me frustar tentando dominar um brinquedo com
vontade própria. Agora vai, sê feliz! É o que eu verdadeiramente desejo, que sejas feliz. Eu estarei aqui à espera que todo esse rancor, essa
dor e essa tristeza passem. Eu estarei a espera da rosa sem espinhos no cano da
arma com que me acusas.